Reportagem edição:133 (16 julho de 2015)

Fim da linha

A 21 abril de 2012 a mítica linha do caminho-de-ferro estremocense foi encerrada e nasceu a novíssima avenida Rainha Santa Isabel. A ligação ferroviária entre Évora e Estremoz já estava ameaçada quando em 1990 foi encerrado o transporte de utentes, mas troço havia de se manter ativo ao tráfego de mercadorias até 2011. Depois tudo mudou. Os vestígios da linha férrea praticamente já desapareceram. Aqui ou ali ainda é possível ver alguns carris, mas os comboios e automotoras desapareceram de vez do imaginário dos estremocenses. Tudo mudou mas a saudade e a nostalgia mantêm-se no olhar dos moradores e nos testemunhos dos mais antigos funcionários da CP. A ligação rodoviária entre a EN 18 e a Avenida de Santo António, mereceu um investimento global a rondar os 4 milhões de euros, no âmbito do programa de reabilitação urbana de Estremoz. A linha de Évora, de 140 quilómetros de extensão, ficou assim reduzida a 36 quilómetros (os 27 quilómetros de Casa Branca a Évora e 9 quilómetros até Évora-Norte). O resto morreu.

O princípio do fim da CP

António Malhadas, Delfino Covas e João Pereira, antigos funcionários da CP, na companhia da reportagem do ‘E’, revisitaram o cenário do ‘local de trabalho’ e falaram sobre o passado e o presente. Foi um regresso emotivo. Passados quatro anos, o desmantelamento da linha continua bem vivo nas memórias destes estremocenses. Durante mais de duas horas, a conversa foi parar (como não podia deixar de ser) a alguns dos momentos que viveram durante os mais de 30 anos dedicados aos “comboios”. A emoção tomou conta dos nossos entrevistados que lamentaram a saída do museu da C.P. de Estremoz, o estado de degradação das antigas instalações e a substituição da linha ferroviária pela avenida rodoviária. Delfino Covas, foi assentador e operador de via durante 37 anos. Para além destas funções, ainda trabalhou como guarda da passagem de nível. João Pereira, também foi assentador e operador de via na empresa. Na sua folha profissional constam 34 anos na CP. O nosso terceiro entrevistado chama-se António Malhadas e também foi assentador na empresa. Doze anos depois mudou de funções e foi condutor durante 25 anos. São pessoas marcadas pelo tempo e pela dedicação à causa do caminho-de-ferro, um dos maiores traços de modernidade do século passado. Atrás do comboio vinham as notícias, os produtos e a gente nova carregada de esperança e de desenvolvimento. Para Delfino, João e António houve esse tempo e depois, de repente, chegou a particularidade comum aos três: no dia 30 de outubro de 2000 saíram definitivamente da empresa. Apontam o dedo à entrada da REFER na CP para o fim da linha. “Desde que a REFER entrou na CP é que a empresa começou a dar a volta. Começamos logo a arrancar linhas nas estações de Cabeço de Vide, Fronteira e Sousel. A CP era uma boa empresa, chegou a ter 27000 trabalhadores e todos tinham as suas regalias. Agora foram todas tiradas, até o pessoal que trabalha só pode viajar de casa para o trabalho e vice-versa, de resto têm que pagar como uma pessoa normal”, diz António Malhadas, resignado com o que aconteceu.

Linha da saudade

Delfino Covas é o mais nostálgico. O olhar perdido na longa avenida de alcatrão, onde os acidentes não param de acontecer, deixa perceber uma saudade imensa. Onde antes deslizavam os “seus” comboios, circulam hoje condutores frenéticos e cheios de pressa. Delfino não tem dúvidas que o desmantelamento da linha férrea significa o “acabar com uma coisa que demorou anos a fazer. Preferia ter aqui a linha, mesmo sem atividade”. Acrescenta ainda que “podiam ter feito a avenida como existe em Angola. Eles lá têm uma avenida que são 24 km, e passam lá comboios à mesma. Em vez de serem travessas podiam ser barras de ferro a segurar os carris e o comboio passa pelo meio da cidade. Àquela hora os carros não podem andar por aquela faixa, e o comboio vai cheio de gente. Eu estive lá e era assim. Sempre pensei que fizessem isso aqui”, lamentou. António Malhadas e João Pereira estão mais conformados. Só fazia sentido continuar com a linha se “tivesse sido conservada”, explicam à nossa reportagem. “Presentemente, com o ‘ninho de bichos’ que aí estava, penso que está melhor. O que ai estava já não era nada, havia ervas da altura das casas”, reforça João Pereira. António Malhadas acrescenta ainda que “como nunca mais havia para aqui comboios e como a linha estava, assim ficou mais limpo e bonito”.

Histórias que marcam

A conversa avança e depois do período em que a emoção e a saudade mandaram mais, surgem as histórias hilariantes, as peripécias e alguns sustos. Delfino, João e António reviveram e partilharam alguns desses episódios. “Uma vez chegámos à entrada da trincheira do Ameixial e um carril estava partido. Tinha abalado a cabeça por completo. A automotora estava a sair do Vimieiro e tínhamos que resolver o problema o mais rápido possível. Serrámos de um lado, metemos um bocado de carril, colocámos um parafuso ou dois e rezamos para que aguentasse a passagem da automotora. Felizmente aguentou e depois acabamos de arranjar o carril”, remata Delfino. Os outros ouvem em silêncio, sempre com o olhar perdido num tempo que deixou de existir. Aquele silêncio entre os três, confirma o espirito de solidariedade duma vida dedica à CP. António Malhadas recordou também o maior susto que apanhou enquanto condutor. “Um dia ia daqui para Portalegre e estava uma grande geada. Quando ia a fazer a passagem de nível, a dresine não parava e fui a apitar a ver se não passava nenhum carro, senão levava-o à frente. Graças a Deus não passou nenhum carro  nessa altura”. Também João Pereira partilhou uma história que podia ter acabado em tragédia. À saída de Borba para o Barro Branco, parou um carro e o condutor pediu para abrir a cancela para passar porque dizia que ia doente. Eu abri e assim que ele passou a traseira do carro, passou a automotora. Foi o maior susto que apanhei. O homem ficou mais branco que a cal da parede. A partir daí nunca mais abri a cancela”. Depois dos episódios mais dramáticos vêm à memória algumas peripécias. João Pereira lembra que “uma vez, as vacas iam a passar ao mesmo tempo que a automotora e acabou por dar uma “trancada” numa vaca. O Coimbra, que era o maquinista, puxa do canivete e cortou a língua à vaca e levou-a para comer (risos)”. Numa outra ocasião, “a automotora voltou a atropelar uma vaca e fui eu lá ver aquilo. Quando vejo, estava tudo com o canivete a cortar a vaca. Entretanto aparece um senhor, que dizia ser o dono da vaca e perguntou quem tinha dado autorização de lhe mexer. Depois disse que tínhamos que pagar a vaca. Nós respondemos que pagávamos mas avisámos que a automotora também avariou e que o senhor tinha que pagar o arranjo. Assim que dissemos isso, disse logo que a podíamos levar à vontade que a vaca não era dele (risos)”.

Espaço Museológico de Estremoz

O Espaço Museológico de Estremoz situava-se na antiga estação ferroviária. Possuía diversos objetos de interesse, tais como: utensílios usados na reparação e conservação da via-férrea, nomeadamente ferramentas e veículos para inspeção da mesma, dos quais salientava-se, um quadriciclo a pedal utilizado pelo Chefe do Lanço, um quadriciclo motorizado para o serviço do Chefe de Distrito e uma dresine de inspeção para o pessoal superior da Companhia. Para além de faróis, lanternas, telefones, marcadeiras de bilhetes, placas de fabricante e de numeração de locomotivas, manómetros, níveis de água das caldeiras, assim como outros aparelhos normalmente instalados sobre as locomotivas. Disponibilizava ainda alguma documentação gráfica sobre os primeiros tempos dos Caminhos de Ferro em Portugal.

Museu  começou bem e acabou mal

É com muita saudade e pesar pelo seu estado de degradação, que os três recordam o antigo Espaço Museológico de Estremoz. “O fim do museu foi a pior coisa que fizeram, porque havia muita gente que vinha a Estremoz só para ver o museu. O problema é que não queriam pagar a uma pessoa para ali estar”, lamentou Delfino Covas. “A primeira coisa que eles fizeram foi levar a máquina D. Luís para Santarém. A outra mais pequena e as duas grandes foram para o Entroncamento. Agora só já ali restam restos (aponta para o antigo espaço do museu). Está além o furgão e o prato giratório para virar as máquinas”, prosseguiu. António Malhadas recorda as horas que dedicou ao museu. “Trabalhei ali muitas horas a esfregar as chapas compridas das máquinas”. Relembra ainda que “a máquina D. Luís foi a primeira a abalar. Na outra cocheira estava lá a carruagem onde viajava o Salazar. Era quarto, sala, cozinha e casa de banho. Era um luxo. Havia loiças em cobre, toalhas de linho, os sofás eram enormes e a cama era extraordinária”, salientou.