RELATOS DO ULTRAMAR: Edição 96 / 30 de janeiro de 2014

Desta vez não saímos de Estremoz. Serviu em Moçambique, de março de 1972 a julho de 1974, numa área extremamente importante, a logística, visto pertencer ao serviço de administração militar. Figura bem conhecida na cidade, conta-nos a história da sua guerra, de fio a pavio, e deixa-nos muito admirados com a sua memória. Não foi “pêra doce” a sua comissão. Trata-se de Rafael José Catela, um bom amigo do Núcleo de Estremoz da Liga dos Combatentes e um elemento sempre disponível para ajudar.

´E´ – Como foram os cerca de 28 meses passados no que foi o nosso território banhado pelo Índico. Qual o transporte utilizado e em que zona ficou instalado?
Rafael Catela (RC) – Fiz o meu batismo de vôo. Embarquei em Lisboa, integrado numa Companhia de Intendência e desembarquei numa cidade que me fascinou, Beira. Mas quase não me deram tempo para a conhecer, porque meteram-nos noutro avião para Nampula e daí, passados uns dias, seguimos numa coluna até Porto Amélia, cidade que hoje é designada por Pemba. Foi uma grande “estopada”, visto que, por estradas que deixavam muito a desejar, tivemos que “gramar” à volta de 800 Km.

´E´ – E ficou em Porto Amélia?
RC – Era bom era! É que Porto Amélia já era uma cidade com vida e à beira mar plantada. A Companhia foi dispersa em pelotões e ao meu saiu na rifa a pequena povoação de Palma, muito próximo da fronteira com a Tanzânia e onde não se sentia que houvesse paz. Estava lá um pelotão de Engenharia e uma Companhia de Caçadores encarregada da parte operacional. E foi neste buraco que aguentei mais de 20 meses.

´E´ – E quanto a aquartelamento? Alguma coisa de jeito ou nem por isso?
RC – Não me fale nisso! Uma desgraça completa! Umas barracas imundas foi o que os nossos antecessores nos legaram, protegidos em volta por montes de bidões-cheios de terra, por causa dos ataques do inimigo. Fartámo-nos de trabalhar para dar algum jeito naquilo, mas não faz ideia das condições em que vivíamos.

´E´ – Foi um combatente sem combater, não é verdade?
RC – Bem, devido à minha especialidade, não andei no mato aos tiros, lá isso é verdade, mas só o facto de estar num aquartelamento que, volta e meia, era atacado, olhe que não é situação nada agradável. No dia 15 de outubro de 1973, pelas 22.00 horas (ataques sempre de noite) fomos atacados por cerca de 200 homens da FRELIMO durante 45 minutos. E não era nenhuma brincadeira! Eles dispunham de morteiros 82, foguetões 122 terra-terra e canhões sem recuo 7,5. Encontravam-se colocados a 2km da pequena povoação que flagelaram, causando alguns mortos e feridos, entre a população civil.

´E´ – E os militares nada sofreram?
RC – Acho que tinham má pontaria, pois no quartel (se é que se podia chamar quartel àquilo) os estragos foram insignificantes. Um ferido ou outro sem gravidade.

E – E a unidade operacional não atuou?
RC – Atuou, sim senhor! Logo que raiou o dia, perseguiu aquela maralha, pô-los em fuga e ainda destruiu algum material. Olhe que isto até foi notícia neste jornal “O Diário” (mostrou a velha folha do jornal moçambicano com a notícia que lemos com o maior interesse e onde se encontravam descritos com todos os pormenores, os acontecimentos ilustrados com fotografias).

E – E durante o ataque onde se refugiou?
RC – Debaixo de umas máquinas grandes da engenharia, pois pareceu-nos o lugar mais seguro. Fiquei um bocado “acagaçado”, embora com a arma aperrada, pois o grupo podia avançar sobre a povoação para a luta corpo a corpo. Felizmente que isso não aconteceu, talvez por receio deles. A Companhia Operacional respondeu activamente ao ataque e provou ter algum potencial, embora o deles fosse superior.

E – Pelos vistos, guarda a folha religiosamente como recordação.
RC – Guardo sim senhor, da mesma forma que guardo muitas fotografias desse tempo.

E – Quais os momentos mais dolorosos para si na sua comissão?
RC – Para lhe falar com franqueza, eram aqueles em que tinha de fornecer urnas, pois tinha essa missão a meu cargo. Nessa altura já existiam urnas com chumbo para os corpos regressarem à metrópole. Era uma missão que mexia um bocado com a minha sensibilidade, pode disso ter a certeza.

E – Quanto à alimentação, como eram os reabastecimentos?
RC – Vinham de Porto Amélia, por mar, até Palma. O mar fica a mais ou menos a 5km de Palma e nós íamos com viaturas buscá-los. Mas não era nada que se dissesse “benza-te Deus”! Carne de vaca super congelada e quanto a frescos, só congelados também. Às vezes tínhamos peixe fresco fornecido pela população de Palma, mas regra geral,
comia-se muito mal.

E – População branca?
RC – Não, não havia população branca. Era só negra e alguns “monhés”. Mas devo dizer-lhe que a determinada altura fui mandado para Porto Amélia onde passei o resto da comissão. E, como disse, Porto Amélia já era uma cidade interessante e onde se vivia mais ou menos tranquilo. Foram uns três meses agradáveis, embora com imenso trabalho na Manutenção Militar, mas gozava a praia, ia ao cinema, namoriscava e não sentia aquela solidão de Palma.

E – Qual a sua ideia sobre a Guerra antes de se dar o 25 de abril, pois estava lá quando a revolução aconteceu.
RC – Ao contrário de muita gente, eu não fui um grande pessimista. É claro que sabíamos que Moçambique estava em guerra, mas desconhecíamos a extensão da mesma em quase todo o território porque, como sabe, as informações não eram muitas, ou melhor dizendo, eram muito poucas. Desta maneira, cheguei a pensar que conseguíamos vencer a FRELIMO e os outros movimentos. É claro que hoje, dentro da realidade, não penso como pensava nesse tempo, mas olhe que tenho pena que o fim do Império tivesse sido como foi. O pouco que conheci de Moçambique (Beira, Nampula e Porto Amélia) deu-me a ideia que os portugueses que ali viviam já tinham feito alguma coisa de valor. É muito provável que andassem por lá muitos exploradores, mas havia gente trabalhadora que, com o seu suor, conseguiu fazer a sua casa e viver com um certo desafogo.

E – Muito teria de mudar e os nossos políticos nunca quiseram. E deram azo a que muitas vidas se tenham perdido…
RC – Lá isso é uma verdade, uma triste verdade e, como já lhe disse, sentia um estremecimento muito grande sempre que tinha que fornecer mais um caixão para nele dormir o sono eterno mais um camarada. E não forneci tão poucos como isso.

E – Admiro essa memória privilegiada que tem, pois passadas quatro décadas descreve os acontecimentos como se tivessem acontecido apenas há um mês…
RC – Não tem que agradecer. Foi até com muito gosto que acedi ao seu pedido. E olhe que tenho muito orgulho em ter sido um combatente da guerra do Ultramar. Jamais deixaria de cumprir esse dever para com a Pátria, muito embora hoje compreenda que os nossos políticos cometeram um grande erro em terem prolongado os conflitos de Moçambique, Angola e Guiné. Se tivesse possibilidades, gostaria de, passados estes 40 anos, rever os locais por onde passei durante a minha comissão, muito embora, segundo as notícias que ouvimos, as coisas não estejam muito bem naquele país, tudo por causa da ambição dos homens. Rafael Catela na atualidade, sempre operacional…

Velez Correia