RELATOS DO ULTRAMAR: Edição 92 / 5 de dezembro de 2013

Estamos em Algueirão, concelho de Sintra. Encontro marcado na casa do major do Serviço Geral do Exército, na situação de reforma, José Ribeiro Doutor, “ rapaz” da minha idade (oito décadas), natural das Aldeias de Montoito e que conheço há 60 anos quando, como soldados recrutas, em 1954, no extinto Regimento de Infantaria nº 16, em Évora, iniciámos a nossa carreira no Exército. Fizemos a Escola de Cabos, decidimos preparar-nos para um possível concurso ao posto de furriel, que surgiu e, promovidos no mesmo dia àquele posto, fomos colocados, em 1957, no também extinto Regimento de Infantaria nº 5, em Caldas da Rainha. Talvez eu seja uma daquelas pessoas que melhor conhecem as grandes qualidades humanas do Zé Doutor, um homem que se fez por si próprio, militar com elevado espírito de missão e forte personalidade, grande capacidade de trabalho, dotado de superior inteligência, alto sentido do humano, leal, sensato e uma integridade de caráter, exemplar.

´E´- Comecemos por falar da comissão na Índia…
José Doutor (JD) – Incorporado no batalhão de Caçadores da Estremadura, lá fui, via Canal Suez, até Mormugão. Foi uma viagem que parecia não ter fim. Com alguns sobressaltos porque, como sabes, os chefes indianos andavam com uma vontade enorme de se apoderarem dos nossos territórios, lá se cumpriu a comissão. E há aqui um pormenor que desejo apontar e que ainda hoje me comovo ao pensar nele: é o facto de relembrar a devoção com que todos os indianos de qualquer religião, crença ou casta acorriam ao túmulo de São Francisco Xavier. Impressionante!

´E´ – Calculo. Por conseguinte vamos à segunda comissão, visto que, por pouco, não foste prisioneiro na Índia…
JD – Pronto! Lá estás tu a dar as tuas ordens! Queres então que te fale já na segunda comissão e nem tão pouco me deixas falar das belezas da que foi o nosso território indiano. Pois bem, à paupérrima Guiné, ainda solteiro e bom rapaz (tu casaste quando eu ia de viagem para a Índia, lembro-me bem) cheguei quatro meses após a minha chegada da Índia e fui, como reforço normal à guarnição que ali se encontrava. Integraram-me num Batalhão que foi destacado para TITE, mas quando chegámos, o muito fraquinho quartel ainda não se encontrava pronto. Camas não existiam. Dormir no chão era o nosso recurso. Quando elas (as camas) chegaram de Bissau, foi uma festa, mas os foguetes acabaram muito depressa porque de colchões nem sombra… Só muito mais tarde! Como resolver a situação? A malta tinha que se adaptar a tudo e resolveu o problema utilizando ramos de árvores! Não era lá grande coisa, mas era um pouco melhor que o chão.

´E ´ – Felizmente quanto à guerra ainda quase nada, não é verdade?
JD – Guerra a sério, confesso que ainda não existia, mas era a tal paz podre a que tu te referes várias vezes nos teus escritos. Muitos boatos que eram motivo de grande preocupação e sentia-se algo de estranho nas pessoas que não nos dava tranquilidade nem paz de espírito. Mas a guerra surgiu meses antes de finalizarmos a comissão de serviço. Primeiro, um ou outro ataque de surpresa sem grandes consequências, graças a Deus. Numa noite em que sofremos um desses ataques, já mais violentos, quando voltámos à camarata verificámos que um projétil tinha entrado num colchão pelos pés da cama e saído pela cabeceira. Felizmente o leito estava vazio. Nesta altura apercebi-me que a guerra tinha vindo para ficar, pois pelo pouco que nos chegava aos ouvidos era fácil de adivinhar que a Guiné tinha muito para sofrer.

´E´ – Na realidade, daí para a frente foi sempre a doer. Mas temos que entrar na terceira comissão…
JD – Está bem, mas ainda não te disse que regressei da Guiné, onde sofri bastante, em 18 de outubro de 1963 e por cá andei até 23 de novembro de 1966, altura em que fui mobilizado para a imensa Angola, fazendo parte da Companhia de Comando e Serviços do Batalhão da Caçadores 1890, nesta altura já casado, pois como sabes, dei o nó (que nunca mais se desatou) em 1964. E tu apadrinhaste o meu casamento! (risos).

´E´- É verdade! E estás prestes a fazer 50 anos de homem casado. Mas esta terceira comissão sei que foi a doer, pois a guerra em Angola estava no seu auge.
JD – Mal chegámos a Luanda, lá tivemos que marchar para Nambuagongo, um nomeque arrepiava só de ser pronunciado. O perigo espreitava a cada passo e, de vez em quando, lá se perdia mais uma vida ou feridos que teriam de ser evacuados para Luanda e alguns para a metrópole, conforme a sua gravidade. Foi um ano de “credo na boca”, pois a zona do Batalhão era fértil em forças adversas. Foi um ano de muitos perigos, de problemas sem fim, até que chegou o momento de irmos para uma zona mais calma naquela altura, o Lobito. O quartel ficava num morro sobranceiro à cidade com uma vista maravilhosa. Encontrei assim um ambiente convidativo para receber a minha mulher e as duas filhotas que já tínhamos.

´E´ – E em beleza passaste o resto da comissão…
JD – É verdade, sim senhor! Comparado ao que se sofreu na zona de Nambuangongo, foi como que um paraíso. A família veio depois do Natal de 1968 para a metrópole e o Batalhão embarcou a 18 de Fevereiro de 1969.

´E´ – E depois a Escola Central de Águeda, onde nos encontrámos na frequência do curso que nos levou ao oficialato.
JD – Olha, estás a ajudar-me, pois essa parte estava-me a passar. Lá fiz o curso e a 3 de fevereiro de 1974, já com os galões de alferes, parti, na qualidade de chefe da secretaria do Batalhão de Artilharia nº 6223 do Regimento de Artilharia Pesada nº 2, rumo a Moçambique, com destino a Furancungo, lá na Cabeça do Cão. E a minha família (já éramos cinco, pois nessa altura tinha nascido o primeiro dos dois rapazes) acompanhou-me, até porque a minha mulher ia para lá trabalhar na qualidade de professora primária. Furancungo fica a três mil metros de altitude e tem, por isso, um clima maravilhoso, não obstante ficar a apenas 180 quilómetros de Tete, quiçá uma das zonas mais quentes daquela que foi a nossa grande Província do Indico.

´E´ – Que sorte! E condições de vida?
JD – Ora aí é que residiu o grande problema, rapaz. Estávamos perto da fronteira com o Malawi, numa zona de grande isolamento e alto risco, com acessos só de avião. Por terra, apenas se podia viajar em colunas. No que respeita à aviação eram frágeis avionetas batidas por fortes correntes de ar devidas ao terreno montanhoso e às variações de pressão. O pessoal para lá seguiu de avião, claro está, mas os abastecimentos tiveram que seguir numa grande coluna que cobriu os 180 quilómetros em cerca de vinte dias! E tu sabes que isto é verdade. As picadas estavam numa desgraça e havia o perigo de minas; as pontes simplesmente não existiam; as avarias nas viaturas eram uma constante. Só Deus sabe o sofrimento daqueles homens sempre expostos aos maiores perigos. São os tais heróis anónimos.

´E´ – E como eram os vossos abastecimentos?
JD – Por via aérea, mas a ementa base era: salsichas com arroz ao almoço; arroz de salsichas ao jantar, com bolachitas a servir de pão. Nesta altura, já soprava ventos do 25 de Abril, mas a atividade terrorista não abrandava. Estabelecidas rotinas, os abastecimentos continuaram a partir de Tete por via aérea (não havia outro remédio) exceto os frescos e as carnes que vinham do planalto de Angonia. Para abreviar, dir-te-ei que algum tempo depois do 25 de Abril iniciaram-se contactos e conversações com os chefes terroristas. Entregámos-lhe as instalações e deslocámo-nos para Cahora Bassa (um país dentro de outro país) pois no aeroporto havia serviços aduaneiros!

´E´ – Recordámos e não esqueçamos que recordar é viver…
JD – Quero ainda dizer que nesta comissão assisti a alguns casos gravíssimos como o de um alferes que ao comandar uma equipa de despiste de minas foi atingido por uma que lhe causou a morte. Por outro lado (e este é o reverso da medalha naquela guerra) as crianças duma aldeia de turras situada a poucos quilómetros do nosso aquartelamento, frequentavam a escola de Furancungo! E certo dia recebemos um pedido de socorro para uma parturiente da mesma aldeia e a nossa ambulância, protegida por forte escolta, foi lá e salvou.

Velez Correia