RELATOS DO ULTRAMAR: Edição 89 / 24 de outubro de 2013
Com um percurso de vida exemplar, no âmbito profissional, familiar e cívico, o entrevistado deste mês é João Ribeiro. Um alentejano nascido na ridente vila de Veiros, em novembro de 1943 (69 anos) e antigo combatente em Angola. Não foi parco em palavras para relatar o que foi a sua guerra de mais de dois anos em Angola, a colónia que era a “joia da coroa” do nosso Portugal.
Jornal E – Em que condição seguiu para Angola? Rendição individual ou integrado em alguma unidade formada na metrópole?
João Ribeiro (JR) – Fui integrado no Batalhão de Caçadores (BCaç) 770, depois de ter assentado praça no Regimento de Lanceiros nº1 e feito a recruta, além da especialidade de condutor auto. O Batalhão foi formado em Abrantes e a minha Companhia era a 767. Em 28 de abril de 1965, no saudoso ´Vera Cruz´, lá seguimos para aquela a que chamávamos a nossa Angola, tendo desembarcado em Luanda 10 dias depois.
´E´- E o seu Batalhão ficou em Luanda?
JR – Apenas uns dias, pois logo seguimos para o norte que era a zona da “porrada”, como a malta a designava. Zemba foi o local onde aquartelámos, na UÍGE, uma província quase tão grande como Portugal. Nesse aquartelamento (e refiro-me à minha Companhia) permanecemos um ano. O terreno da nossa zona de ação era muito acidentado, com montes e vales profundos, com vegetação exuberante, mas extremamente perigosa para o tipo de guerra que travávamos. Subi algumas vezes ao ponto mais alto da nossa zona, Mucondo, e a paisagem que se desfrutava era espetacular, impossível de descrever. Na minha mente surgia um sentimento de insignificância perante tanta grandeza e perguntava a mim próprio como seria possível terminar a guerra que estávamos travando, perante o cenário que os meus olhos viam, pois um grande exército ali se poderia refugiar sem ser visto, mesmo do ar.
´E´ – Desempenhou sempre as funções de condutor auto? Que me diz das picadas nesses lugares do imenso território?
JR – Sim, fui sempre condutor auto, mas acumulei com as de mecânico auto, a minha profissão na vida civil. Quanto às picadas eram… picadas abandonadas, embora existissem algumas que não eram tão más quanto isso, pois a zona era muito rica em roças de café que nessa altura se encontravam abandonadas, existindo ainda algumas que estavam mais próximas das povoações. Lembro ainda a Roça do Resende, das Três Marias, da Maria Fernanda, do Ramalho, de Santa Eulália e tantas outras, meu Deus! Como eu lamentava a guerra que não permitia que estas riquezas se desenvolvessem.
´E´- Relativamente aos comandos e à camaradagem em geral?
JR – Nesse aspeto apenas poderei dizer que formámos uma grande família, bastante unida e alguns percalços neste aspeto não tiveram qualquer relevância. Praticamente não houve punições e não há dúvida que tanto a classe de oficiais como a dos sargentos faziam parte integrante dessa grande família. O perigo a que permanentemente estávamos sujeitos cimentava essa amizade que ainda hoje se mantém entre os que, felizmente, se encontram no número dos vivos.
´E ´- Momentos de desânimo e de ansiedade? Baixas sofridas? Como viveu tudo isso?
JR – Momentos de desânimo e de ansiedade quem os não teve em teatros de operações? Naturalmente foram muitos, pois o afastamento da família, o isolamento e a incerteza do regresso eram uma constante. Mas sou crente, um homem
de fé e isso ajudou-me muito. Medo? Haja o primeiro que afirme que nunca o sentiu. Mas a coragem que incutíamos uns aos outros e a tal fé suplantavam esse receio constante que, por vezes, nos deixava com um certo desespero.
´E´ – Quanto a episódios dramáticos, o que tem para contar aos nossos leitores?
JR – Isso é um ponto que me é muito difícil de, em breves palavras, poder relatar, já que foram tantos que não sei por onde começar. A verdade é que tivemos um número assinalável de feridos em todo o Batalhão, alguns de maior gravidade que outros, como é natural. Por acaso, os quatro mortos do BCaç 770 foram todos da minha Companhia, sendo três em combate e um por acidente. Havia quem dissesse que as baixas verificadas na 767 foram devidas ao facto do comandante da Companhia ser o mais novo do Bat e, consequentemente, o menos experiente. Jamais encontrei alguma lógica nesta argumentação. Foi um mero acaso.
´E´- Pode-nos relatar um episódio por si vivido e que se encontre gravado na sua memória, visto que já verifiquei que a sua lucidez é extraordinária e a sua memória privilegiada?
JR – Então, ao acaso, contaria esta aventura que só não me custou a vida e ao camarada com quem a vivi, por sorte e, quiçá, por proteção divina. Aconteceu na véspera de Natal do ano de 1966. O meu pelotão estava destacado nas salinas do Capulo, cerca de 20 Kms a sul de Ambriz. Logo de manhã, em missão de serviço, seguimos com mais duas viaturas a caminho da Fazenda Tabi. Ao fim da tarde, de regresso, várias peripécias que aconteceram com as viaturas, deram azo a que eu e outro militar ficássemos sós, já de noite, com uma viatura incapaz de prosseguir viagem, isto a cerca de 10 Kms de Ambriz, caminho que tivemos de percorrer, a pé, em plena noite e sujeitos, a todo o momento, a sermos apanhados pelo In. E outra dúvida ia surgindo nas nossas mentes: é que ao aproximarmo-nos do perímetro do quartel, fortemente guardado pelas sentinelas, poderíamos ser confundidos com elementos do IN e abatidos. Antes de chegarmos ao controlo, gritámos com a força que nos foi possível, dando a nossa identificação. E o perigo passou, até porque a nossa ausência já era preocupação de todos e estava preparada uma patrulha para nos procurar. E a noite de Natal foi passada deste modo, pois ainda tivemos de ir buscar a viatura abandonada.
´E´- Nessa altura já tinha saído de Zemba…
JR – Exactamente. Depois de um ano em Zemba, viemos para perto de Ambriz, tendo a minha Companhia ficado sedeada na Fazenda do Tapi, uma espécie de paraíso banhado pelo Rio Onzo, fértil em peixe, desde o lagostim ao cacuso e muitas outras espécies, não faltando os jacarés. E aqui passámos seis meses, findos os quais fomos destacados para perto de Nambuangongo, com o fim de apoiarmos uma Companhia de Engenharia para ali destacada e aí abrir uma estrada através do imenso matagal, em direção ao rio Zaire. Foi uma missão muito dura, já que dia e noite tínhamos de estar sempre alerta.
´E´- Saudades de Angola, caríssimo João Ribeiro?
JR – Até certo ponto, sim. A minha consciência não me pesa pelo facto de ter ido para aquele território com o fim de matar os nativos. Considerei sempre que ia defender Angola da cobiça de outros países, aos quais a UPA e o MPLA obedeciam cegamente. Senti que os povos do que foi o nosso maior território do Ultramar estavam muito longe de estar preparados para uma independência. E não me enganei, pois a guerra ainda mais cruel surgiu depois, como todos sabemos. Saudades? Angola tem locais de sonho, é uma terra cheia de potencialidades. É riquíssima e bem merece ser devidamente explorada para a felicidade do seu povo. Mas quando chegará esse momento? Tenho saudades, sim senhor, não dos momentos maus que lá passei, como é evidente, mas por alguns bons e daquelas terras cheias de encanto que gostaria de rever. Deixei Angola no dia 6 de junho de 1967, data em que embarquei de regresso, novamente no ´Vera Cruz…Contando tudo isto, fui obrigado a recuar no tempo e voltar aos meus vinte e poucos anos.
Velez Correia