RELATOS DO ULTRAMAR: Edição 94 / 4 de janeiro de 2014

Oh Elvas, oh Elvas, Badajoz à vista!… Foi na cidade raiana, Património da Humanidade, que encontrámos mais um combatente da guerra do Ultramar, um daqueles que ainda está “para as curvas”. Trata-se do sargento-mor oriundo da Arma de Cavalaria, Joaquim Manuel Germano Ganhão, com o qual tive a honra de servir nos Dragões de Olivença. Das suas qualidades de homem e militar, rezam os inúmeros louvores que lhe foram concedidos ao longo da sua brilhante carreira, mas não poderia deixar de destacar o seu fácil relacionamento humano, a sua permanente boa disposição, a indesmentível competência técnica, a forma meticulosa, construtiva e inteligente como sempre desempenhou as funções que lhe foram atribuídas. É, utilizando a gíria militar, um camaradão de excelência e sempre se evidenciou um militar disciplinado e disciplinador. Recebeu-nos com a sua habitual disposição contagiante.

´E´ – Quantas comissões fez lá na nossa África durante os 14 anos de guerra em que nos encontrámos envolvidos?
Joaquim Ganhão (JG) – Foram quatro, sendo três em Angola e uma em Moçambique. A primeira, integrado no Esquadrão de Cavalaria nº 122, foi logo no início da guerra na imensa Angola, ou seja, de 1961 a 1963. E a situação estava mesmo a “ferver”, razão por que passámos por muitos trabalhos, até porque o Esquadrão, tal como a restante tropa, não se encontrava preparada para aquele tipo de guerra. Não se sabia bem quem era o inimigo. Foi
uma adaptação algo difícil, mas, ao fim de dois anos creio que não deixámos ficar por mãos alheias o prestígio da Cavalaria, a Arma a que tive o grande orgulho de pertencer. Moral elevado, espírito de sacrifício e entreajuda, aliados a voluntarismo, sentido do dever, determinação, firmeza, poder de decisão e serena energia foram qualidades que nunca faltaram aos homens do Esquadrão de Cavalaria nº 122. E os sete mortos que tivemos em combate, além dos vários feridos, alguns de muita gravidade, são bem a prova do arrojo, da coragem e do desprezo pela vida para honrar a Pátria. E é isso, infelizmente, que muita gente não compreende, ou não quer compreender.

´E´ – E em 1963 regressou e sem esperanças de voltar porque, entretanto, a guerra terminaria. Ou estarei enganado?
JG – Está enganado sim senhor, muito enganado, como aliás se viu. Ainda me deixaram andar por cá cerca de três anos, mas em 1966 fui novamente mobilizado para Angola, fazendo parte da Companhia de Cavalaria nº 1535. E olhe que esta comissão doeu ainda mais que a primeira, pois os mortos foram em número de oito e os feridos foram bastantes, alguns marcados para o resto das suas vidas.

´E´ – Embora alguns episódios impressionem sobremaneira os nossos leitores, atrevo-me a pedir-lhe, amigo Ganhão, que nos conte apenas um daqueles que mais o marcou, passado no teatro de guerra.
JG – Em 1968, já perto da data do regresso à metrópole, integrado no pelotão de que fazia parte, fomos destacados para uma zona onde na véspera, havia ocorrido uma emboscada que nos causou quatro baixas. Depois de calcorrearmos uma distância de mais de 20 quilómetros através do capim que não nos permitia uma marcha apressada, fomos também emboscados. O alferes que nos comandava, Azevedo Pais e o cabo Cipaio, que servia de guia, foram mortalmente atingidos. Sem meios para contactarmos a Companhia e com dois mortos junto de nós, assumi o comando do pelotão e, pela calada da noite, dei ordem a metade do pelotão para, cautelosamente, seguir até à base, a fim de avisar o comandante da Companhia sobre o que havia acontecido. Tarefa arriscadíssima, tanto mais feita de noite. E, com a zona infestada de “turras”, foi com grande alívio que, ao raiar da manhã, chegaram viaturas, sobrevoadas por um T.6 que se deslocou do Luso para apoio. E assim fomos recolhidos com os nossos mortos que velámos, em pleno teatro de guerra, durante aquela longa e dolorosa noite em que nenhum de nós conseguiu fechar olho, pois o alerta teria de ser constante. E só quem passa por momentos como estes e outros que o espaço não me permite descrever, é que pode dar o devido valor ao muito que se sofreu na denominada guerra do Ultramar.

´E´ – São dos tais episódios que nos marcam profundamente e que, por consequência, nunca mais esquecem. Mas vamos à terceira comissão, valeu?
JG – Esta tem pouca história, visto que me mandaram um ano depois de me encontrar na metrópole, para Moçambique. Lá chegado, colocaram-me na Companhia de Comando e Serviços do Quartel General. Muito trabalho, muito serviço de escala, mas nada comparado ao que se sofria no mato como operacional. Foram dois anos que se passaram com normalidade, muito embora estivesse em cima dos acontecimentos. A guerra estava cada vez mais “acesa” e eu não via jeitos de se alcançar o final. E embora África tenha um certo feitiço, cá o nosso retângulo não me saía da memória. Compreende-me, não é verdade? Desta comissão nem falo em mortos ou feridos. Mas como a guerra parecia eternizar-se, senti, ao regressar, que esta não seria a minha última comissão.

´E´ – E não se enganou, pois voltou mais uma vez a Angola, desta vez já como 1º sargento integrado numa Companhia de Comandos…
JG – Acertou em cheio. Em 1973, doze anos depois da guerra ter eclodido em Angola e depois de duas comissões na que foi a maior Província do nosso Portugal, posso dizer que tive a honrosa missão de servir o Exército, agora como
1º sargento, numa Companhia de Comandos com o nº 2042. Homens de barba rija, destemidos, valentes, bem preparados para a guerra, manejando as armas com uma precisão impressionante, enfrentando o perigo por vezes com um sorriso nos lábios, pode crer que os admirei. A sua postura, por vezes, obrigava-me a fazer-lhes chamadas de atenção, o que eles, por norma, aceitavam e corrigiam-se. Mas eram realmente homens escolhidos a dedo, com fibra, sempre prontos para a luta. Perdemos para sempre seis homens desta Companhia e alguns ficaram feridos com certa gravidade, mas nem isso lhes tirava o ânimo de lutar, de fazer a guerra para se alcançar a paz. E o mais doloroso é que alguns encontraram a morte já depois da revolução que pôs fim à guerra entre nós, visto que a guerra continuou, de forma muito mais cruel entre eles.

´E´ – O Ganhão não envelheceu. Parece-me o mesmo Ganhão de há 30 anos nos Dragões de Olivença. Tive ocasião de consultar a sua folha de matrícula e, obtidos em campanha e não só, verifiquei que a sua carreira militar foi enaltecida com numerosos louvores que deram origem a condecorações conseguidas com muito mérito. Chegou ao posto mais elevado da briosa carreira de sargentos, à qual eu tive a grande honra de pertencer, pois os galões jamais me subiram à cabeça. Peço-lhe, caro Ganhão, umas últimas palavras para o seu relato.
JG – Em primeiro lugar, endereço os meus cumprimentos aos leitores do “E” e em segundo desejo felicitar a direção do jornal por, através destes relatos, dar voz aos antigos combatentes que tanto deram pela Pátria e que não foram devidamente recompensados. Através desta página que o major Velez Correia, antigo combatente também, orienta e quanto a mim, muito bem, embora não se considere um jornalista, as novas gerações poderão ficar com uma embora pálida ideia do que foi a Guerra do Ultramar, guerra que a classe política da época nos obrigou a fazer. Ninguém nos pode considerar assassinos, porque as guerras são mesmo assim: para se não morrer (e tantos lá ficaram), somos obrigados a matar. Lamento a forma como os sucessivos governos, depois do 25 de Abril, têm vindo a tratar os combatentes desta guerra. Mas a verdade é que o mesmo sucedeu com os da I Grande Guerra, pelo que não nos podemos admirar.

Velez Correia