RELATOS DO ULTRAMAR: Edição 80 / 6 de junho de 2013

Pois desta vez, na cidade – museu, fomos encontrar não o Geraldo Sem Pavor, mas um brioso militar que conheço desde os meus tempos de soldado recruta, no extinto Regimento de Infantaria nº 16. Era ele então o furriel Pérsio. Subindo a pulso, é hoje o tenente – coronel na situação de reforma JOÃO PÉRSIO PITA DA SILVA. Somos do mesmo Curso de Oficiais, em Águeda, mas ele, mercê da sua clara inteligência, do seu espírito arguto e perspicaz, extrema dedicação e constante procura de melhorar os seus conhecimentos, foi daqueles que, no referido curso, alcançou os primeiros lugares e correu mesmo o “risco” de atingir o número um. Firmeza de carácter, elevado sentido do dever e da sã camaradagem, indefectível lealdade e sentido de disciplina, são algumas das inúmeras qualidades que, ao longo da sua carreira militar, foram enaltecidas e destacadas em numerosos louvores que lhe foram concedidos. Convidado para fazer parte dos RELATOS DO ULTRAMAR, o tenente – coronel Pérsio não se fez rogado e aqui está, embora muito resumida, como não podia deixar de ser, a sua actividade na guerra do Ultramar como sargento e oficial do nosso Exército.

 

‘E’ – Na qualidade de colaborador do jornal E e de velho camarada e amigo, desejo, em primeiro lugar, agradecer a tua disponibilidade no sentido de me concederes um relato da tua guerra no que foi o nosso Ultramar, pois sei que foram bem duras as tuas comissões, sobretudo em Angola e Moçambique. Tal como eu, safaste-te da Guiné. Mas vamos lá à tua história, meu caro. Quantas foram as tuas comissões em terras que constituíram o nosso grande Império Colonial?
JP – Para já, devo dizer-te que não tens nada que agradecer, visto que os amigos… são para as ocasiões! Um pedido teu tinha que ser satisfeito. Olha, quanto a comissões foram nada menos que quatro e, como é evidente, vou começar pela primeira. Após a minha promoção a sargento do Quadro Permanente fui nomeado para Cabo Verde. Desembarquei na Ilha de Santiago. Permaneci durante dois anos na cidade da Praia em vida de quartel. Grande monotonia, apenas quebrada pela instrução de recrutas, serviço de escala, secretaria, etc.

‘E’ – Uma comissão sem história, até porque nesse tempo vivia-se naquele ambiente de paz que, aos poucos, ia apodrecendo, não é verdade?
JP – Exactamente, Velez Correia. Regressei a Portugal, após os dois anos de comissão, voltei para o Regimento de Infantaria nº 16.

‘E’ – Mas cinco anos depois a guerra em Angola eclodiu e o 2º sargento Pérsio lá teve que
marchar para a maior colónia do nosso Império, não foi?
JP – Que remédio! Fui mobilizado para a 10ª Companhia da Caçadores Especiais a (83ª Companhia Independente na Mobiliação geral). Lá seguimos para Lamego e no respectivo Centro de Instrução de Operações Especiais recebemos instrução durante nove longas semanas. Como estávamos fazendo muita falta em Angola, calcula tu que nessa altura até fomos de avião com uma paragem na Ilha do Sal (para matar saudades de Cabo Verde!) Isto em Abril de 1961. O grupo de Artilharia de Campanha, em Luanda, alojou-nos no seu aquartelamento e, até Junho, os patrulhamentos aos musseques de Luanda eram constantes, pois o levantamento popular de 4 de Fevereiro estava bem presente na mente da população da capital de Angola.

‘E’ – A quem o dizes, Pérsio, pois eu estava lá desde Julho de 1960. Foram vocês e outros que entretanto chegaram que nos salvaram, tenho disso hoje a mais firme certeza. Mas estiveram
pouco tempo em Luanda, não é verdade?
JP – Até Junho, altura em que navegámos para Cabinda. Não te rias, porque fomos mesmo a navegar de barco (uma carcaça com o pomposo nome de 1º de Maio) que eu nem sei como se aguentou! O Batalhão de Cabinda, da guarnição normal, acolheu-nos, mas o nosso destino era DINGE, a 100 quilómetros da cidade de CABINDA, logo à entrada duma das maiores florestas de África, o MAIOMBE. Impressionante! Aquartelados numa antiga serração de madeiras (da Suíça) que se encontrava inactiva, só te digo que foi o melhor aquartelamento que encontrei no mato em todas as comissões.

‘E’ – Um luxo, meu caro Pérsio, um luxo!
JP – Sem dúvida. Mas o percurso entre Cabinda e Dinge, a determinado ponto, era só terra queimada, pois as populações abandonaram as aldeias e fugiram para a República do Congo.

‘E’ – E qual era a vossa missão específica na área operacional do DINGE?
JP – Patrulhamentos, naturalmente, até à fronteira do CONGO Brazzaville (MASSABI), floresta do MAIOMBE, etc. O Movimento FLEC (Frente de Libertação do Enclave de Cabinda) ainda estava em organização e isso redundou em nosso benefício, bem como do Batalhão Operacional instalado em BUCO ZAU. Nos fins do ano de 1962, fomos substituídos e a Companhia veio para o Caxito. Sem problemas de maior, ali permanecemos, até que no início de 1963 regressámos ao “puto”, desta vez no UÍGE que navegava com uma certa inclinação, creio que para a esquerda, pois já não me lembro muito bem.

E – E temos que avançar para a 3ª comissão, pois o espaço começa a escassear.
JP – Vamos a ela! Já como 1º sargento, fui integrado na Companhia de Caçadores 1475 a fim de, dentro de pouco tempo, iniciar a 3ª comissão, desta vez em Moçambique, quiçá a mais difícil e perigosa de todas. Depois de breve preparação no Campo Militar de Santa Margarida, em Março de 1964, lá fomos para Mocímboa da Praia, o nosso destino, a bordo do NIASSA…

‘E’ – Que não navegava inclinado como o UÍGE…
JP – Olha, dá-me a impressão que se encostava um pouco para a direita… Chegados a Mocímboa da Praia, lá seguimos para M´PANGA, a 12 kms, foz do rio com o nome da povoação. Parte da Companhia seguiu para CHITOLO, uma missão de padres católicos, contando apenas com a igreja e a casa dos padres. Mais nada! Foi posta à prova a capacidade daqueles homens transmontanos na sua grande maioria. Num curto espaço de tempo e sem prejuízo da actividade operacional, fizemos alojamentos para oficiais, sargentos e praças, arrecadação de material, oficina auto, paiol, sendo a cozinha ao ar livre. Tenho um certo orgulho em afirmar que o aquartelamento de CHITOLO foi escolhido para ser visitado e muito elogiado pelo então ministro da Defesa, numa sua visita a Moçambique.

‘E’ – Mas no que no que toca a baixas foram realmente uns felizardos.
JP – E fomos. Não há dúvida nenhuma que o fomos. Pena é que o espaço de que dispomos não permita ir mais longe neste aspeto, mas não posso deixar de contar alguns episódios. O percurso para a sede do Batalhão era altamente perigoso, pois a débil picada era rodeada de capim que permitia as emboscadas e a colocação de minas. Certa vez uma Berliet foi ao ar devido a uma mina. Depois, ataque forte com bazuca e tiros. Resultado: apenas alguns ferimentos ligeiros. Pareceu um autêntico milagre!

‘E’ – Realmente até parece mentira, visto que acidentes desses, por norma, originavam mortos e
feridos mais ou menos graves.
JP – Mas vou contar-te outro do qual fui um dos protagonistas. Numa altura em que me tive de deslocar à sede do Batalhão (era o 1º sargento, como já disse) mais ou menos a meio do percurso, tivemos uma emboscada. Logo aos primeiros tiros, a malta, num ápice, saltou das viaturas e embrenhou- se no capim. É evidente que saltei também. Aquilo que parecia berma da picada era capim curto, no qual me afundei, rolando para aí uns cinco ou seis metros até que parei muito sossegado. No entanto, atrás de mim, vinha outro militar rolando também e só parou quando encontrou o meu corpo. Pois a sua “delicada” bota assentou-me com tal violência na coluna que me provocou uma dor tal que me levou a pensar que estava arrumado. Felizmente que nada me partiu, mas as sequelas ficaram até hoje, 47 anos depois.

‘E’ – Estou vendo que, como disseste, foi uma comissão deveras perigosa, mas com muita sorte
pelo meio.
JP – Foi, mas um alferes ficou sem um pé e usa uma prótese; um soldado socorrista sofreu ferimentos tão graves que teve de ser evacuado para Lisboa e muitos outros estão hoje a sofrer devido a graves problemas, sobretudo naquela maldita picada de CHITOLO a MOCIMBOA DA PRAIA. E olha que em Março de 1966, quando completámos dois anos de comissão, não regressámos à metrópole, pois mandaram-nos para a terra do chá, na serra de NAMULI; depois para ANTÓNIO ENES, a 100 Kms de NAMPULA. Só em Março de 1967 se deu o regresso.

‘E’ – E no ano seguinte encontrámo-nos em Águeda para a frequência do Curso para oficial…
JP – Exatamente. Terminado o curso, voltei ao saudoso RI 16, mas, já como tenente, fui novamente mobilizado, desta vez para ANGOLA, novamente. Era adjunto do comandante da CCS do Batalhão de Caçadores 5072, formado no Batalhão de Caçadores nº 10, em Chaves. De avião lá fomos até Luanda, mas a companhia de Comando e Serviços tinha por destino CHITEMBO, uma povoação “logo ali”, ou seja a 1200 Kms de Luanda!

‘E’ – Parece que uma força sobrenatural sempre te acompanhou nas tuas comissões, pois é sempre agradável o sabermos que no meio de tantos perigos, quanto a mortos, zero.
JP – Assim foi na realidade, Velez Correia. Devo dizer-te que nesta comissão começaram a surgir os sinais do princípio do fim. O Batalhão, com cerca de 600 militares, tinha entre oficiais e sargentos do QP, menos de uma dúzia. A coesão das tropas estava a desmoronar-se e faltavam incentivos de esperança para a situação se resolver. Começou a fase do não se acreditar. E, entretanto, dá-se o 25 de Abril.

‘E’ – E deu-se o vosso regresso definitivo, como não podia deixar de ser.
JP – Estás enganado. Ainda nos mandaram para MAQUELA DO ZOMBO, na fronteira com a República do Zaire, visto que faltavam quatro meses para o final da comissão! Resta-me dizer-te que bom seria que as coisas tivessem acontecido de outra forma para o final do nosso Império, mas os homens não o entenderam assim.

Velez Correira