RELATOS DO ULTRAMAR: Edição 82 / 6 de julho de 2013

O nosso entrevistado deste mês revelou a sua franqueza logo que o convidámos com uma expressão na qual deu sobejas provas da sua modéstia, facto que logo nos sensibilizou. Foram as seguintes as suas palavras: “ Oh sr. Major, eu estive mais de dois anos em Angola, sempre a contar 100% no aumento do tempo de serviço, mas praticamente não estive envolvido na guerra, como tantos milhares de camaradas que por lá passaram! “ Não é muito vulgar encontrar-se um homem com estes dotes de caráter, com esta sinceridade. Claro que não o deixei de ouvir e afinal pareceu-me muito interessante o seu Relato do Ultramar. Trata-se do estremocense ANTÓNIO MARIA GARCIA MERINO, antigo combatente e um conceituado comerciante da nossa cidade, indivíduo de trato afável, educado e que, no seu Núcleo da Liga dos Combatentes, desempenha as honrosas funções de porta-bandeira com muita dignidade.

E- Agradeço-lhe ter aceite o meu convite para participar nos RELATOS DO ULTRAMAR, pois consultei o seu boletim de inscrição no Núcleo e verifiquei que esteve na guerra, em Angola de 1972 a 1974. Qual era a sua arma?
AM– Era Artilharia, mas olhe que eu, como já tive ocasião de lhe dizer, fui um combatente do ultramar muito privilegiado, visto que quase não soube, felizmente,o que foi a dureza da guerra.

E- Ainda bem que tal sucedeu, mas a verdade é que esteve lá sujeito às contingências dum conflito terrível que teve a duração de 14 anos com o nosso envolvimento. Diga-me se foi integrado nalguma unidade ou se seguiu em rendição individual.
AM– Fiz parte da 1ª Companhia Antiaérea Fixa em Queluz, onde tirei a especialidade e fui promovido a 1º cabo. No dia 10 de Outubro de 1972, integrado no pelotão nº 7072/72, comandado pelo alferes VALENTE (que era mesmo Valente e desenrascado) lá segui para Angola, num confortável avião da TAP, com todas as mordomias de passageiros normais.

E- Felizardo! Já tinha passado o tempo dos militares seguirem nos porões do Niassa, Vera Cruz, etc. Estou mesmo a ver o seu Pelotão, à chegada a Luanda, seguir imediatamente para a barafunda do Grafanil.
AM – Exatamente. Foi para lá que nos levaram e onde ficámos em preparativos para seguirmos rumo à zona Leste do imenso território de Angola. Partimos 10 dias depois de estadia naquele campo de Tropas e o nosso destino era VILA LUSO. Numa velha Berliet, fomos até SILVA PORTO, onde chegámos extenuados de tão longa viagem. Em SILVA PORTO tomámos um comboio muito ronceiro até NOVA LISBOA, onde pernoitámos num dos quartéis ali existentes. Viagens sem perigo aparente, mas
nós íamos precavidos para qualquer percalço, como não podia deixar de ser.

E – No dia seguinte, rumo a VILA LUSO, não é verdade?
AM– E foi mesmo assim. Chegados a VILA LUSO que, para nós, já parecia o fim do mundo, pois tínhamos a perfeita noção, da enorme distância a que nos encontrávamos das nossas casa cá no “puto” , tão pequeno em comparação com a enorme ANGOLA, foi-nos atribuída a missão da defesa do Aeródromo SARMENTO RODRIGUES, que hoje deve ter um nome diferente, como é óbvio.

E- E essa defesa foi espinhosa? Tiveram alguns problemas graves?
AM– Esse foi um ponto fundamental da minha guerra em ANGOLA. Embora o serviço fosse muito apertado, porque a vigilância teria de ser contínua, ainda hoje sou obrigado a afirmar, com sinceridade, que em VILA LUSO tive uma “guerra santa”. Mas não isenta de sofrimento, na medida em que vi muita desgraça chegar ao aeródromo vinda das matas. Uns gravemente feridos, sem braços ou sem pernas; outros já mortos; outros, com menos gravidade, mas falando, com enorme saudade, dos pais, das mulheres
e dos filhos, com os olhos rasos de lágrimas. E era nessas alturas que eu sentia como que uma espécie de remorsos, por verificar as grandes diferenças que existiam entre os combatentes da guerra do Ultramar. Enquanto estava num local aparentemente calmo, com algumas comodidades, com a comida a horas, outros encontravam-se no mato, dormindo onde calhava, comendo as intragáveis rações de combate e sujeitos aos maiores perigos.

E- As guerras são mesmo assim, há a frente e a retaguarda. E o meu amigo teve a sorte de ficar na segunda.
AM– Mas, havia algo de terrível que era o boato. Quando chegavam rumores que o Aeródromo iria ser atacado, a malta era obrigada a redobrar a vigilância e muitas noites não fechávamos olho. É que, dum momento para o outro, tal podia acontecer, até porque o inimigo dispunha cada vez mais de armamento moderno e sofisticado. E se tal acontecesse, não sei bem qual seria a nossa sorte, até porque éramos poucos, embora mais ou menos bem armados.

E- E ficou em VILA LUSO durantetoda a comissão?
AM– Não fiquei, não senhor. Ao fim de 18 meses, fui integrado numa secção para CABINDA, secção essa composta por cinco homens, sendo eu o apontador da bateria antiaérea e os outros quatro os municiadores. A bateria despachava 1.600 balas por minuto, com fita. Uma maravilha para a época!

E- E fez algum trabalho (de guerra, bem entendido) no enclave de CABINDA?
AM– Ainda fiz, mas muito pouco, porque entretanto deu-se o 25 de Abril e foi a partir daí, quando pensava que tinha surgido a tão almejada paz, que eu senti a guerra. Marchámos para LUANDA e durante dois meses vimos as coisas muito negras, pois os “turras” invadiram parte da cidade, faziam rondas pelas sanzalas festejando a vitória e fazendo distúrbios sobre distúrbios.
Enquanto nós, para salvarmos o pêlo, tínhamos de estar muito atentos, muito vigilantes e nada de aventuras na grande cidade, visto que eles eram capazes de tudo, pois, em sua opinião, tinham vencido a guerra, odiavam o branco e sentiam-se agora os grandes senhores do território. Foram dois meses de grande confusão, pois encontrávamo-nos envolvidos numa autêntica guerra civil que, como sabemos, durou muitos mais anos. Digo-lhe mesmo que, nesta altura do “campeonato”, tive os maiores receios de levar um balázio e ficar por lá para sempre. Vi as coisas muito feias. Ninguém se entendia e LUANDA estava a ferro e fogo.

E- Merino, antes de terminarmos, diga-me o que mais o marcou durante os seus mais de dois anos em ANGOLA, na defesa do nosso Império ultramarino.
AM– Os pontos que considero mais marcantes foram os seguintes: 1º O ver mortos e feridos que chegavam ao Aeródromo, vindos
do mato, e eu sentir-me ali mais ou menos seguro e com as comodidades que eles estavam longe de ter. 2º O aperceber-me, a determinada altura, que a guerra não tinha sentido e que os homens deviam ter encontrado uma solução atempadamente para se evitar a carnificina que provocou e da qual as gerações depois do 25 de Abril não têm noção, na sua grande parte. 3º O ter sido o final da guerra o principal motivo da restituição da liberdade, mas, ao que tudo indica, não soubemos aproveitar devidamente para o país encontrar a verdadeira felicidade. As razões são muitas, mas eu não me sinto com capacidade para as apontar. A verdade, a triste verdade, é que estamos a sofrer as consequências de tantas asneiras que se fizeram.

Velez Correia