RELATOS DO ULTRAMAR: Edição 74 / 14 de março de 2013
No prosseguimento da nossa tarefa de darmos voz a antigos combatentes da Guerra do Ultramar que estão no ostracismo, fomos encontrar mais um que cumpriu uma comissão em Angola desde Abril de 1965 até Julho de 1967. E não foi necessário ir muito longe, visto que reside em Casa Branca, ali bem perto da vila do Cano. Sofrendo da doença de Parkinson, este antigo combatente acedeu ao nosso convite com simpatia e, com muita lucidez, apesar da doença o afectar, concedeu-nos o relato do mês. É autor duma publicação que designou por DEMBOS, na qual, numa linguagem simples, mas com um texto interessante, nos dá a conhecer o que foram os dois anos em Angola, integrado numa Companhia de Caçadores do Batalhão no 770, formado no extinto Regimento de Infantaria no 2, em Abrantes. Trata-se de MANUEL JOAQUIM PIFANO ANDRADE PERNINHAS que foi soldado condutor auto e que, apesar de tudo aquilo por que passou, tem algumas saudades da imensa Angola.
Velez Correia
‘E’ – Diga-me lá, amigo Andrade, em que data embarcou para Angola e em que navio?
Manuel Andrade (MA) – Precisamente no dia 28 de Abril de 1965 no paquete VERA CRUZ que levava a bordo mais de 3.000 mil homens para aquela colónia, ou melhor, província ultramarina, tal como nos explicaram logo na recruta, pois Angola era, tal como o Alentejo, uma província de Portugal.
‘E’ – Assim era, de facto, por motivos de ordem política. Mas diga-me onde ficou instalado o seu Batalhão.
MA- Depois da habitual passagem por Grafanil (uma confusão dos demónios) seguimos para a grande Fazenda Maria Fernanda, essencialmente para proteção aos trabalhos que ali decorriam para o progresso e desenvolvimento de Angola, mas que os turras impediam com os seus ataques. Foi missão muito dura e, temos que confessar, a malta não estava devidamente preparada para a desempenhar.
‘E’ – Mas adaptou-se pouco a pouco, não é verdade?
MP – Que remédio! Estávamos em guerra e tínhamos que pensar que não era uma guerra a brincar. E então surgiu a lei desenrasca-te. Mas, referindo-me à minha Companhia, tínhamos um grande comandante. Muito humano, disciplinado e disciplinador, sempre atento aos nossos problemas e com uma personalidade muito forte, o nosso Capitão Marcelino hoje coronel na situação de reforma. Mas sofreu-se muito e depois era uma guerra que a gente não entendia, porque não nos era muito bem explicado. Por vezes, nem sabíamos bem quem era o inimigo, porque os negros matavam-se uns aos outros. Uma confusão tremenda para nós.
‘E’ – E permaneceram durante toda a comissão naFazenda Maria Fernanda?
MP– Não senhor. Ao fim de uns meses vieram ordens para nos deslocarmos para CAMBAMBA, um lugar muito isolado, sem condições, mas onde, mais uma vez, tivemos que nos desenrascar, até porque já não éramos maçaricos, como eram tratados todos aqueles que chegavam da metrópole. Os turras, cada vez melhor armados, com armas automáticas, chegaram mesmo a atacar o improvisado aquartelamento, mas, felizmente, sem grandes danos pessoais. No entanto, como é natural, estas situações “mexiam” muito com a malta que sabia estar dentro dum barril de pólvora, podendo, dum momento para o outro, ir desta para melhor (ou pior) pois isso é coisa que não sabemos.
E – O amigo Andrade não tem algum episódio que mais o tivesse marcado para contar aos nossos leitores?
MP – Há tantos que não sei qual contar, até porque o espaço não dá para muito, conforme já me disse antes da nossa conversa. Mas olhe, aí vai um que embora me não tivesse marcado por aí além, não deixa de ter o seu interesse e é bem a prova de como duas pessoas, em situações idênticas, demonstram personalidades tão diversas. Tivemos dois prisioneiros durante toda a nossa comissão, capturados pela Companhia que nos antecedeu. Um era o LOTO e o outro o PINTO. O primeiro, arrogante, sempre se afirmou como turra e nunca cedeu perante alguns maus tratos que lhe foram infligidos. Era turra e mesmo e tinha mesmo orgulho em afirmá-lo. Já o PINTO, menos instruído que o seu camarada, tornou-se mesmo escuras. Em AMBRIZ tínhamos algum conforto, enquanto nos outros aquartelamentos quase tudo nosso amigo e, embora na situação de prisioneiro, muitas vezes foi aproveitado para guia das nossas patrulhas. Mas uma coisa curiosa: jamais o LOTO tentou a fuga (e tinha oportunidade de, pelo menos, tentá-la); obedecia às ordens dos graduados para executar trabalhos diversos. Mas era racista cem por cento.
‘E’ – Mas ainda estamos em CAMBAMBA, não é verdade? Foi lá que passaram o resto da comissão?
MP – Não, mas foi lá onde a comissão foi mais difícil. Viemos depois para AMBRIZ e ficámos num aquartelamento à beira mar e com uma bela praia. Até noa parecia que estávamos de férias… no paraíso! A princípio, por mais patrulhamentos que se fizessem, não se encontravam turras. Mas a verdade é que eles acabaram por surgir e de tal forma que a estrada LUANDA-AMBRIZ e vice-versa começou a tornar-se algo perigosa. Emboscadas a viaturas civis com assassinatos estragaram as nossas férias e a nossa actividade passou a ser mais intensa. Descobriram-se refúgios deles e abateram-se alguns, naturalmente.
‘E’ – Portanto, não foi assim tão boa como se supunha a vossa estadia no AMBRIZ, povoação simpática que bem conheci e que tinha excelente condições para se desenvolver.
MP – Pois não, mas em comparação com MARIA FERNANDA e CAMBAMBA era como o dia ao pé da noite, daquelas noites muito nos faltava até padeiro fui, já que tinha alguns conhecimentos dessa arte. E que bom pão lá fabriquei! Saídinho do forno, era um regalo para toda a malta! Olhe que quando conto certas coisas a pessoas que não fazem ideia do nosso sofrimento em campanha, por vezes noto que duvidam daquilo que lhes contamos.
‘E’ – Mas sei que a sua especialidade de condutor auto, exposto a todos os perigos com viaturas muito envelhecidas e com milhares de quilómetros de rodagem, sofreu um acidente que o reteve em ANGOLA, não lhe permitindo regressar à metrópole com os seus camaradas. Não se importa de nos contar essa história?
MP – É verdade e muito lamento que me tivessem retido em LUANDA por um acidente do qual não tive culpa e que podia ter tido muito mais graves consequências, se acaso eu não tivesse sangue frio naquele momento. Mesmo assim, saí dele ferido, mas o pior foi o furriel que seguia a meu lado; este partiu a clavícula, tendo que baixar ao hospital. O jeep estava a cair aos bocados, mas lá ia cumprindo a sua missão. Numa estrada, em serviço de escolta e para não bater numa viatura que me surgiu pela frente atravessada na estrada, visto os travões terem falhado, guinei para a esquerda e saí da estrada. Logo que a viatura encontrou a valeta, eu e os outros ocupantes fomos cuspidos, eu fiquei com uma orelha cortada, mas o furriel teve menos sorte, como já disse. Claro que me foi levantado um auto e tal deu-me o grande desgosto de ver partir os meus camaradas para o “puto” e eu ficar em LUANDA, como se fosse um criminoso. Doeu-me muito, mas nada havia a fazer, apesar da boa vontade dos meus chefes.
‘E’ – Não foi punido, pois não?
MP – Não. Apurou-se que não tive culpa no acidente. Custou-me muito, mas tudo passou e é com o maior entusiasmo que encontro amigos (grandes amigos) nos almoços de confraternização que realizamos. Tenho a plena consciência de ter cumprido o meu dever e hoje aquilo que mais me dói é saber que a guerra do Ultramar poderia ter sido evitada se os políticos de então tivessem seguido outros caminhos. Nessa altura, estava muito longe de supor o que se passava à volta do nosso Império do Ultramar. Tantos pais ficaram sem filhos, tantas mulheres sem maridos e tantos filhos sem pais…
‘E’ – Tenho afirmado muitas vezes que fui um dos que abriram “as portas da guerra” e um daqueles que as “fecharam”, visto que estava em ANGOLA quando ela eclodiu e em Moçambique quando se deu a Revolução dos cravos. Quer deixar alguma mensagem para finalizar?
MP – Sim. Um forte abraço para tantos camaradas amigos que lá fiz e com os quais vou tendo a felicidade de me encontrar nos tais almoços, incluindo aquele militar que nos comandou e que nos deu grandes provas de coragem, de determinação e de sentido de justiça, o nosso capitão Marcelino. À Liga dos Combatentes, especialmente ao Núcleo de Estremoz, do qual sou sócio, desejo que se concretizem todos os desejos da Direção, para bem de toda a sua massa associativa. E fica ainda um obrigado por me terem dado esta oportunidade de, mais uma vez, falar, embora resumidamente, do que foi a minha comissão em terras dos DEMBOS na imensa ANGOLA, da qual, apesar de tudo, sinto, por vezes, uma certa saudade.
Caro Manuel Perninhas, sou natural de Avis aí bem pertinho da sua terra, onde tenho vários amigos. Caso curioso o meu percurso em Angola foi idêntico ao seu. Em Cambamba bons e maus dias que recordo com saudade. A camaradagem que perdura pela vida fora ainda é consagrada anualmente durante o almoço do batalhão. Neste período nunca sofremos uma emboscada. Nada de minas . Só que guerra é guerra e na passagem pelas picadas o stresse era mais que muito deixando marcas para toda a vida. Não esqueço contudo as idas a Vista Alegre, Carmona e Quitexe onde eu bebi a melhor cerveja do mundo e comi o melhor churrasco do mundo. Da sanzala de Cambamba tenho boas recordações dos seus habitantes com os quais tínhamos cordiais convívios. Ver site do batalhão 2833 setembro 2013. De Cambamba rumamos a Ambriz onde ficamos o resto da comissão. Em Ambriz estivemos destacados na fazenda Tabi, salinas do Capulo,roça Stª Hermínia e finalmente em Freitas Mornas onde estive a comandar o pelotão que guardava a ponte sobre o rio Loge. Foi aqui que passei os meus melhores dias. Para suprir o condicionalismo das refeições íamos á caça. Nas vésperas de retorno á metrópole fizemos uma festa de despedida em Luanda com o dinheiro que poupamos com os géneros que não requisitamos.
Resta enviar-lhe um abraço desejando-lhe um bom Natal e um Ano Novo com saúde.
Sempre ao dispor Jacinto Leal